Sunday, September 7, 2014

Ciência em Portugal: dar nozes a quem tem dentes


Muito ruído tem sido feito em torno do processo de avaliação em curso, das unidades de investigação científica Portuguesas, encomendado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) à “European Science Foundation” (ESF). O tom geral é de queixume: que metade das unidades perde financiamento; que as regras de avaliação não são claras; que os avaliadores não são competentes. A situação da ciência em Portugal não é fácil mas convém não perder o norte, sob pena de abalarmos os alicerces de política científica nacional que tantos anos levaram a construir.

Em primeiro lugar, devo dizer que me parece inadequado politizar um processo eminentemente técnico e científico. O processos de avaliação científica entre pares têm imperfeições, como qualquer sistema de avaliação, mas não se espera que melhorem quando são usados como arma de arremesso político ou quando grupos de interesse os procuram torpedear se os resultados não os beneficiam. Por definição, qualquer processo de avaliação científica gera descontentamento. Não pretendem eles discriminar? Quando se discrimina, há quem perde e há quem ganha. A solução para os que perdem nunca passou, nos países que nos servem de referência, por falar grosso nos jornais buscando auxílio de quem não tem informação nem conhecimentos para saber se as avaliações são, ou não são, justas. A solução envolve, por parte de quem avalia, a criação de mecanismos que asseguram a isenção e a transparência do processo (que estiveram assegurados nesta avaliação). Da parte de quem é (mal) avaliado, mais trabalho, contínua capacidade de renovação e muita persistência. A avaliação por pares, num ambiente de forte competitividade, é o dia-a-dia dos investigadores profissionais. Um dos ensinamentos que procuro incutir aos meus alunos é a necessidade de serem capazes de gerir a frustração ao verem negados os seus trabalhos, alguns deles de grande qualidade, por avaliadores independentes. Eu sei que não é para todos, que fere o ego, que por vezes se cometem injustiças nas avaliações, mas é indispensável para quem quer vingar nesta profissão.

Em segundo lugar, surpreende-me o alarido em redor da alegada existência de quotas predefinidas para financiamento das unidades. De acordo com a FCT, essas quotas nunca terão existido pelo que o alarido seria injustificado. A informação de que disponho é que terá havido uma tentativa de calibrar as avaliações de acordo com parâmetros Europeus e harmonizar graus de exigência entre painéis, o que levou algumas unidades a ter oscilações na avaliação antes da publicação dos primeiros resultados. Como não participei neste processo de avaliação, abstenho-me de fazer mais comentários específicos. No entanto, a sugestão de que a avaliação deveria ter considerado o mérito absoluto das unidades é ingénua. Todos os processos de avaliação competitiva que conheço são baseados no conceito de mérito relativo. É assim no desporto e na ciência. Porquê? Porque existe um orçamento limitado e pretendem-se canalizar recursos suficientes para os investigadores (ou unidades) que mais capacidade demonstraram ter para fazer diferença. Quer isto dizer que as unidades não financiadas não poderiam fazer bom uso das verbas? Não. Quer dizer que quando os recursos são escassos, é necessário fazerem-se escolhas, que ainda não foi inventado um sistema melhor do que a avaliação independente por pares e que a tendência internacional é de alocar o financiamento para a investigação, rigorosamente, em função destes processos de avaliação. Por exemplo, o Conselho Europeu de Investigação (ERC na sua sigla Inglesa) financia cerca de 12% dos projetos que lhe são apresentados e o número de projetos financiados é determinado pelo orçamento.  É o que fazem, igualmente, num outro âmbito, as revistas científicas que procuram publicar um número limitado de artigos por ano. A revista científica de que sou Editor-chefe, Ecography, rejeita 80% dos artigos enviados com base em critérios de mérito relativo.

Em terceiro lugar, não entendo como se acusa a FCT ou a ESF de falta de preparação em processos de avaliação. A ESF tem larga experiência de avaliação da ciência. Não ter nunca realizado um exercício idêntico não é uma crítica válida, pois os princípios da avaliação científica são genéricos e uma entidade habituada a gerir processos de avaliação de equipas internacionais, organizadas no âmbito de projetos, está perfeitamente capacitada para avaliar equipas organizadas no âmbito de unidades de investigação. Por seu lado, a FCT (e a sua antecessora JNICT) foram as entidades que trouxeram alguma objetividade nos processos de avaliação científica realizados neste País. Nenhum processo de avaliação é perfeito, não fora este conduzido por pessoas. Mas os processos de avaliação promovidos pela FCT não têm rival em Portugal. As universidades, salvo exceções, não se têm destacado por protagonizarem avaliações exemplares, por exemplo, na contração de docentes em concursos abertos, amarradas que estão à endogamia e à influência de grupos de interesse.

A crítica que se poderia fazer a este governo—em rigor a todos os que se sucederam a extinção do INIC—, foi terem sido incapazes de reformar as universidades no sentido de as tornarem mais orientadas para a investigação científica. Ao invés, criaram estruturas paralelas (os centros de investigação e laboratórios associados), esperando que estes se tornassem âncoras de excelência que contagiassem as universidades. Isso não aconteceu, pois nunca houve pressão para que estas “ilhas” de excelência se transformassem em “âncoras”. A investigação nestas unidades acabou por ser realizada, em grande parte, por bolseiros, muitos deles com elevada qualidade, que nem sequer direito a reforma condigna terão quando atingirem a idade. A solução passaria por criar mecanismos de financiamento para as universidades, indexados à produtividade científica, de forma a incentivá-las a atrair os melhores investigadores e dando-lhes, simultaneamente, instrumentos flexíveis de gestão dos recursos humanos e financeiros.


Que o financiamento para a ciência e educação em Portugal é limitado, estamos todos de acordo. Que seria desejável aumentar esse financiamento, é óbvio. Mas que a gestão dos recursos escassos deva ser feita relaxando a exigência dos processos de avaliação não é defensável. A política do “café para todos”, ou seja, repartir recursos de forma mais ou menos equitativa por todas as unidades científicas e investigadores, é defensável em estádios mais primitivos de desenvolvimento científico. Depois de décadas de investimento em formação de recursos humanos, depois de verificarmos que muitos dos melhores investigadores optaram por deixar o País em busca de reconhecimento, carreiras e recursos que não encontraram por cá, a prioridade deve ser dar nozes a quem tem dentes. Ser exigente, apostar em núcleos de excelência, integrá-los nas universidades e reforçar ou reduzir o financiamento em função de resultados.

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